Doenças crônicas em alta: o novo desafio invisível do saneamento ambiental
- INCT SbN
- 12 de nov.
- 9 min de leitura
Escrito e revisado por Fernando Magalhães
Os micropoluentes são o elo oculto entre saneamento e doenças crônicas? O saneamento reduziu doenças agudas — mas ainda há um legado químico silencioso. É preciso mais do que investimentos para universalizar com o básico. Como as Soluções baseadas na Natureza e Processos Oxidativos Avançados podem ser um caminho viável?
Vocês sabiam que as Doenças Crônicas (DCs) são uma parcela crescente das mortes globais?
Em 2021 as DCs foram responsáveis por pelo menos 43 milhões de mortes — cerca de 75% das mortes não relacionadas diretamente à pandemia — e continuam sendo a principal causa de óbito globalmente.
Já as diarreias e outras doenças diarreicas caíram substancialmente. Estudos do Global Burden of Disease e análises recentes mostram reduções grandes nas taxas e mortes por diarreia entre 1990 e 2021 — uma redução de aproximadamente 60% nas mortes por diarreia no período citado. A mortalidade infantil por diarréia também teve declínio marcado nas últimas décadas.
Isso se deve, em grande parte, pelo avanço no acesso ao saneamento, mas que ainda há lacunas. Entre 2015 e 2024 cerca de 1,2 bilhão de pessoas ganharam acesso a serviços de saneamento - do tipo “safely managed”, elevando a cobertura global de ~48% para ~58%; ainda assim bilhões seguem sem saneamento seguro (JMP/UNICEF/WHO).
Lembrando que o saneamento básico (esgotamento sanitário) se refere ao acesso a uma instalação sanitária melhorada e não compartilhada, enquanto o saneamento gerenciado de forma segura (ou safely managed) exige que os dejetos sejam tratados e descartados de maneira segura, sem riscos à saúde pública ou ao meio ambiente.
Essa transição epidemiológica e envelhecimento populacional, com menos mortes por infecções na infância e maior longevidade, a população vive mais tempo e torna-se mais propensa a desenvolver DCs (cardiovasculares, câncer, diabetes). Isso explica em parte do aumento absoluto e da proporção de DCs.
Porém, o que vemos é que os processos convencionais de estações de tratamento de águas residuárias (ETAR/WWTP) não removem muito bem micropoluentes. Revisões recentes mostram que as plantas convencionais não foram projetadas para eliminar contaminantes emergentes (fármacos, produtos de cuidado pessoal, PFAS, plastificantes, microplásticos e etc.) e muitos micropoluentes passam pelos processos e chegam ao ambiente aquático.
Há persistência de micropoluentes no ambiente aquático e na cadeia alimentar, mesmo com mais cobertura de saneamento, pois o tratamento tradicional não remove micropoluentes (fármacos, PFAS, ftalatos, pesticidas, etc.). Faz com que esses compostos circulem pela água superficial e subterrânea, peixes e irrigação — ocasionando exposições crônicas de baixa dose, por mecanismos endócrinos/imunológicos/genotóxicos, que podem aumentar o risco de doenças crônicas com o tempo.
Em um artigo (de 2020) que realizamos uma revisão de estudos no Brasil e no mundo, observamos que:
a contaminação ambiental é iminente, visto que a produção de compostos emergentes tende a aumentar com o desenvolvimento tecnológico - diversos estudos que realizam monitoramentos comprovam isso em todo o mundo;
as classes persistentes de compostos emergentes, como os xenobióticos, além de serem quantidades "infinitas", apresentam moléculas cujas propriedades físico-químicas, o pequeno tamanho molecular, a ionizabilidade, a solubilidade em água, a lipofilicidade, a polaridade e a volatilidade, dificultam a degradabilidade, a identificação e a quantificação desses compostos complexos;
uma opção tecnológica com baixo custo operacional para o tratamento de compostos emergentes com desempenho satisfatório para diversos tipos de efluentes (esgoto doméstico e agroindustriais), são os wetlands construídos (treatment wetlands); e
há a necessidade de explorar e agregar tecnologias de tratamento de esgoto, como as convencionais (UASBs-anaeróbios, lagoas de estabilização e lodos ativados-aeróbios) e os wetlands contruídos com processos oxidativos avançados (POA) para reduzir ou prevenir a disposição desses compostos no ambiente.
Um ano antes (em 2019), havíamos publicado um artigo sobre a remoção de ibuprofeno e cafeína em esgoto doméstico, utilizando duas configurações de wetlands construídos (vertical e flutuante) com dois tipos de plantas (Heliconia rostrata and Eichornia crassipes). Embora a remoção de cafeína foi de 97%, para ibuprofeno chegou-se em 90% (wetlands verticais). No wetland flutuante foi 94% e 89% para cafeína e ibuprofeno, respectivamente. Isso se deve pois é preciso compreender que:
o parâmetro log Kow mede a hidrofobicidade dos compostos pela partição entre octanol e água (coeficiente de partição octanol/água). Geralmente, compostos com log Kow acima de 2,5 tendem preferencialmente a acumular-se em fases sólidas em vez de permanecerem solúveis na fase aquosa;
o ibuprofeno (log Kow = 3,97) aumenta sua possibilidade de ser retido em meios filtrantes;
a cafeína tem um log Kow de 0,01 e é altamente solúvel em água, sendo encontrada em concentrações mais elevadas em matrizes aquáticas. Supondo que seja removida por degradação microbiana ou processos realizados por plantas, ela tende a ser eliminada mais rapidamente no verão do que no inverno, o que é o caso da região em estudo, com temperatura média de 26–28 °C.
No contexto da relação entre os tipos de micropoluentes e a saúde, o que se sabe é que alguns micropoluentes têm evidência de efeitos crônicos (endócrinos, carcinogênicos, metabólicos). Compostos como PFAS, certos ftalatos, e uma série de contaminantes farmacêuticos e disruptores endócrinos estão associados a alguns tipos de cânceres, disfunção endócrina, efeitos reprodutivos, obesidade e outras condições crônicas. A literatura descreve mecanismos (disrupção endócrina, genotoxicidade, efeitos imunomoduladores) que tornam biologicamente plausível sua contribuição para doenças crônicas em exposições crônicas e em mistura.
Algumas evidências sobre os mecanismos:
os disruptores endócrinos (ex.: ftalatos, bisfenóis) interferem na regulação hormonal; associados a alterações reprodutivas, puberdade precoce, obesidade, infertilidade; pmc.ncbi.nlm.nih.gov
já os PFAS (substâncias per- e polifluoroalquil, ex.: PFOA e PFOS) possuem associações com alguns cânceres, problemas de tireoide, imunotoxicidade e aumento de risco metabólico; são persistentes e não removidos por tratamento simples; sciencedirect.com
e os fármacos e resíduos farmacêuticos (analgésicos, hormônios, antibióticos) podem ter efeitos subletais e cumulativos, promover resistência microbiana e alterar sistemas biológicos em exposições crônicas. pmc.ncbi.nlm.nih.gov
Nos anos seguintes observamos em nossos estudos:
em 2021, a redução da toxicidade diante do diclofenaco em wetlands construídos de fluxo vertical associado à desinfecção solar. Melhores resultados após 3 horas de exposição, o que evidenciou a viabilidade do uso da radiação UV. Mas a inativação completa de coliformes totais e E. coli foi alcançada com intervalos de exposição de 4 a 6 horas; https://doi.org/10.3390/w13081043
em 2023, a remoção de surfactantes (LAS) em wetlands construídos de fluxo horizontal subsuperficial-EvaTAC system (ambiente anaeróbio com água cinza bruta - sem tratamento primário), com grupos de microorganismos identificados capazes de realizar esses processos. Entre os 15 gêneros degradadores de surfactantes, Pseudomonas foi predominante. Os índices de riqueza e diversidade da comunidade foram similares ao longo do sistema, com diminuição na saída. Entre os degradadores de LAS, Rhodopseudomonas palustris apresentou a maior abundância relativa de OTUs (unidade taxonômica operacional) em todas as amostras e a maior riqueza na câmara anaeróbia.; https://doi.org/10.3390/resources12030038
em 2023, avançamos na integração de POA (com foto-Fenton) em um UASB (escala real), tratando esgoto doméstico com 1% de lixividado de aterro sanitário para remover 87% cetoprofeno e 73% diclofenaco. Em 15 minutos, mais de 85% do fármaco KET (cetoprofeno) foi removido,. As condições recomendadas incluem 15 mg L− 1 Fe2+, 10 mg L− 1 H2O2, RI (intensidade da radiação) = 0,39 kWcm− 2, com tempo de tratamento de 15 minutos e vazão de 12,7 L min− 1. O planejamento experimental fatorial aprimorou a eficiência de degradação e mineralização no processo foto-Fenton. O processo remediou eficazmente compostos farmacêuticos em efluentes domésticos urbanos, inclusive em lixiviado de aterro sanitário e reduziu a toxicidade (TU < 0,4) em Artemia sp. e Lactuca sativa; https://doi.org/10.1016/j.jece.2023.110699
em 2023, integramos wetland de fluxo vertical (VF-CW) em escala demonstração (16 m2) entre o UASB (pós) e o solar foto-Fenton (pré), também tratando esgoto +1% de lixiviado. O VF-CW removeu 75% de cetoprofeno e 95% com o solar foto-Fenton. Um aspecto importante e de inovação, foi o uso de citrato como ligante. É mais vantajoso porque a legislação brasileira permite o descarte de efluentes com pH entre 5 e 9, eliminando a necessidade de uma etapa de neutralização pós-tratamento, o que reduz consideravelmente os custos de tratamento. Valores de OPEX foram apresentados. Eliminou eficazmente a toxicidade, como também reduziu os parâmetros físico-químicos a níveis adequados para reuso; https://doi.org/10.1016/j.cej.2023.146282
em 2024, otimizamos o processo UV/H2O2 como pós-tratamento do wetland de fluxo vertical (VF-CW) em escala demonstração (16 m2) tendo um UASB como tratamento primário/secundário em escala real. Atingiu-se remoções de até 95% de DQO, 99% de turbidez e 96% de UV254, com pH próximo da neutralidade. Adicionalmente, eliminação da toxicidade para Artemia sp. e Lactuca sativa (TU ≤ 0,4), juntamente com a eliminação dos parâmetros microbiológicos. As melhores condições experimentais com pH próximo da neutralidade foi uma concentração de peróxido de hidrogênio de 100 mg L⁻¹, com um tempo de exposição de 120 min, índice de radiação de 0,20 kWcm⁻² e agitação constante no reator fotoquímico. Valores de OPEX foram apresentados com diminuição diante da otimização; https://doi.org/10.1016/j.jwpe.2024.105580
em 2024, investigamos o processo de ozonização combinado com peróxido de hidrogênio (O3/H2O2) no tratamento de efluente anaeróbio pós reator UASB em escala real, enriquecido com metilparabeno (MeP). A otimização permitiu uma degradação ótima com 25,0 mg L− 1 de O3 e 30,0 mg L− 1 de H2O2 em pH neutro do efluente, atingindo uma eficiência de remoção de 72% após 60 min e 86% após 120 min. O processo otimizado de O3/H2O2, após 60 minutos, alcançou uma remoção de 95% da DBO, reduzindo a concentração inicial de 138 mg L− 1 para 7 mg L− 1. O teste de toxicidade aguda com Artemia salina e Lactuca sativa indicou ausência de toxicidade (TU < 0,4). Os resultados deste estudo indicam a eficiência da combinação do tratamento do efluente pós-UASB com processos de O3/H2O2 para a remoção de metilparabeno. Valores de OPEX foram apresentados indicando necessidade de trazer viabilidade ao processo; https://doi.org/10.1016/j.jwpe.2024.105741
[O que são parabenos? São ésteres que compartilham o ácido p-hidroxibenzoico (PHBA) como componente estrutural ligado a um grupo alquila (metil, etil, propil ou butil) ou benzil e são empregados como conservantes químicos em produtos cosméticos, alimentícios e farmacêuticos, principalmente o metilparabeno (MeP), devido à sua atividade antimicrobiana e antibacteriana, alta solubilidade e estabilidade em água. Classificados como compostos disruptores endócrinos (EDCs), interferem no sistema endócrino e causam alterações na produção, metabolismo, liberação e eliminação de hormônios no corpo, nos níveis de açúcar no sangue, no crescimento e nas funções sexuais e reprodutivas. Diversas investigações relataram sua presença, incluindo o MeP, em várias matrizes aquosas, como águas superficiais, águas subterrâneas, água potável, sedimentos, além de águas residuárias.]
em 2025, a integração dos sistemas O3/H2O2 e UASB para otimizar a interação desse processo no tratamento de esgoto+1% lixiviado. O sistema combinado removeu até 92% dos produtos farmacêuticos (diclofenaco e cetoprofeno) em 30 minutos, em pH neutro. O planejamento experimental otimizou as variáveis, alcançando 93% de remoção de DBO e 84% de remoção de DQO. Teve-se redução da toxicidade aguda para níveis seguros e não tóxicos. O efluente tratado atingiu os padrões de qualidade da água para reúso; https://doi.org/10.1016/j.jwpe.2025.107644
em 2025, a aplicação do processo de oxidação avançada O3/H2O2, que induziu com sucesso o envelhecimento de microplásticos de polietileno proveniente de efluente de reator UASB em escala real. O tratamento causou modificações estruturais significativas, incluindo erosão superficial, formação de grupos carbonila e liberação de carbono orgânico solúvel. Notavelmente, essas alterações levaram a um aumento inesperado na estabilidade térmica aparente do polímero, com o Tonset subindo de 436,18 para 449,35 °C. Esse resultado sugere a remoção de frações de baixo peso molecular, corroborada pelos dados de COT, e rearranjos estruturais, como a reticulação do polímero em massa. O efluente tratado não apresentou toxicidade aguda para A. salina, e a concentração residual de ozônio (2,80 mg L−1 ) estava em conformidade com os padrões regulatórios. Assim, a principal contribuição deste trabalho foi demonstrar o potencial de um processo de oxidação avançado por meio do envelhecimento de um polímero em uma matriz de efluentes complexa, de maneira ambientalmente segura. A demonstração combinada de eficácia e segurança em condições não ideais representa um passo importante para a aplicação prática do sistema O3/H2O2 na mitigação da poluição por microplásticos em estações de tratamento existentes.
Sendo assim, a relação direta de população-exposição com aumento de doenças crônicas em escala global é complexa e multifatorial: dieta, tabagismo, sedentarismo, poluição do ar, fatores socioeconômicos e genética também desempenham papel importante. Porém a evidência (eco)toxicológica e epidemiológica para impactos crônicos de certos micropoluentes é robusta o suficiente para preocupar e justificar medidas de mitigação (monitoramento e avanços no tratamento de águas residuárias). Tendo como premissa que a integração de POA com processos anaeróbios e Soluções baseadas na Natureza e em especial com wetlands construídos é um caminho viável e seguro.
Políticas de precaução e regulação para classes tóxicas se farão necessárias. A Europa já deu o primeiro passo com a nova diretiva. Metas progressivas já estão postas.
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